Coisas de criança.


Quando eu tinha uns 3 anos de idade, não evacuava. Cheguei a ficar mais de 20 dias guardando minhas fezes no intestino. O pediatra desenganou minha mãe, dizendo a ela que era esperar que o meu intestino iria estourar e eu iria morrer. Não tendo mais pra onde correr, depois de muitas rezadeiras e trabalhos feitos, meus pais me colocaram em terapia. Deu certo! Me lembro que a psicóloga tinha alguns brinquedos, inclusive um Castelo de Grayskull e uns personagens do desenho He-Man e She-Ra. Eu só podia brincar depois que evacuasse pelo menos um pouquinho. Enquanto eu tentava, ela ficava na porta do banheiro conversando comigo.  
Não sei dizer se essa minha lembrança é de todo real, pois eu era muito criancinha. Aliás, lembro pouca coisa dessa fase, mas o pouco que me lembro não é nada bom: Para impedir que as fezes saíssem, quando vinha a vontade,  eu sentava bem na beira do sofá, contraía ao máximo meus glúteos e ficava balançando até a vontade passar; Lembro de algumas crianças que não gostavam de brincar comigo porque eu fedia; Mais tarde, já com meus 7 ou 8 anos, era minha mãe quem aplicava a psicologia infantil e quando eu queria ir para o play ou para piscina tinha antes que ir ao banheiro. Lembro das minhas amigas (Vanessa e Lili, amigas até hoje) me esperando terminar de evacuar, sentadinhas na porta do banheiro (Assim como a psicóloga). Mas nem todo mundo agia como elas. Muitos ironizavam a minha condição. Chegaram a me apelidar de "Raquel Cocô"; Certa vez, encontraram fezes na escada do andar onde eu morava. E todos diziam que havia sido eu. Eu sofria muito por isso. Minha autoestima era baixíssima  e eu adotei uma postura retraída e tímida.
Depois eu cresci, apareci e as pessoas, principalmente os meninos, acabaram esquecendo dessa fato. Minha autoestima melhorou, meu circulo de amizades cresceu e durante muito tempo eu também deixei de lado essa lembrança triste da minha infância.
No entanto, agora, tudo isso veio à tona de novo. Me peguei "deprê", com a autoestima lá em baixo e sem motivo aparente. A princípio, o que me afligia era a minha vida profissional, afinal eu mudei de profissão, resolvi começar do zero e recomeçar sempre é muito difícil. No entanto, quando as lembranças começaram a surgir, (primeiramente eu as neguei) senti que precisava enfrentar a "Raquel Cocô".
Um primeiro passo é contar essa história. Já o fiz. Agora eu preciso me questionar o quanto disso tudo influencia no que sou agora? E o que eu tenho para aprender com isso? As respostas podem demorar um pouco a aparecer.
Pensando em tudo isso, a questão que me veio é: O quanto do que somos hoje foi gerado na infância? E o quão importantes são as experiências vividas nessa fase?
Quando os colegas no play faziam ironias e colocavam apelidos ninguém os repreendia. A grande maioria acha que isso é coisa de criança. Para os adultos (ignorantes) tudo que acontece com a criança é pouco relevante. "Daqui a pouco esquece", "isso é normal", "criança é assim mesmo" são frases típicas. Muitas vezes , os pais do agressor acham as atitudes do filho normal para uma criança e não aplicam a disciplina como deveria ser feito. Se, desde a infância, não formos educados a acolher, ajudar, ter compaixão, ser gentil com o próximo, tão pouco o faremos quando estivermos adultos. Educar também é dizer não!
Na outra ponta da balança estão os pais dos agredidos, que só procuram ajuda quando a situação chega em seu limite (vide meus pais). 
No livro Descobrindo Crianças - a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes, Violet Oaklander diz:
"Muitas crianças manifestam os tipos de comportamento que indicam haver alguma coisa errada. Todavia, a maior parte dos pais hesita antes de pedir ajuda. Penso que a maioria dos pais preferiria não acreditar que seu filho tem o tipo de problemas que possam necessitar de ajuda profissional. Eles dizem a si mesmos: "É só uma fase, a criança vai superar isso". Quem está disposto a admitir que foi um pai imperfeito?"   
Acredito que dei muitos indícios de que alguma coisa estava errada antes mesmo de começar a prender as fezes. Não há e nunca houve um motivo físico para que tal fato ocorresse. Como pude, então, chegar tão longe? 
É preciso observar as crianças e ficar atento quando algum excesso se aponta. É fácil notar uma criança hiperativa, pois ela incomoda. Mas e a retraída, a tímida demais? A grande maioria vai passar a vida inteira resguardando-se do mundo. E as temerosas, as raivosas e as agressivas que ganham má fama na escola, as tensas, as ansiosas, as inseguras? Quem se incomoda com elas?  
Mas o quanto de cada coisa determina o excesso? É difícil dizer. Por isso a ajuda profissional é tão importante. 
Hoje eu faço terapia (arteterapia), não porque sou terapeuta, mas porque vejo a necessidade de olhar pra mim e me questionar, pois assim eu cresço, amadureço e me torno cada dia melhor. A vida não chega a ficar perfeita. Se alguém pensa que terapia elimina problemas pode tirar o cavalinho da chuva. Eles sempre vão surgir. Mas ela te fortalece para enfrentá-los. Te faz enxergar a si mesmo (pra muitas pessoas isso é ruim e essas são as que mais precisam). E é porque estou em terapia que posso, hoje, contar pro mundo essa história.
Fica aqui meu apelo. Vamos olhar com mais cuidado para o outro. Ele pode estar precisando de ajuda. E vamos olhar com mais cuidado para nós mesmos. Não vamos deixar chegar no limite pra pedir socorro.
É isso.
Beijos e Fui!

*A imagem acima foi retirada do site http://brogui.mtv.uol.com.br

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